segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Cuidar da (primeira) infância

Vado a dormire, Pippa Goodhart e Britta Granström, Editoriale Scienza


Os primeiros 1000 dias da vida de uma criança são fundamentais para o seu subsequente desenvolvimento físico, cognitivo e emocional. Zelamos pela alimentação e saúde do bebé, mas muitas vezes não valorizamos ou desconhecemos o papel nutritivo da palavra nas idades mais precoces, ignorando como a relação com os textos da tradição oral e os primeiros livros constituem um motor de construção da capacidade de pensar, de imaginar, de interagir com o que nos rodeia e de interpretar e compreender o mundo, e ainda de vinculação afetiva. 
Os primeiros livros permitem aceder às descobertas leitoras iniciáticas, numa abordagem exploratória, em que o brincar, o pensar, a leitura e a linguagem se fundem num só gesto. Os bebés leem com os cinco sentidos e com o corpo todo: com os olhos e os ouvidos, mas também com as mãos e a boca. Devoram literalmente os seus livros preferidos. Os primeiros livros deverão ser efetivamente considerados objetos que pertencem ao território do brincar, que permitem à criança aceder ao mundo do “faz-de-conta”. Livros de tecido, cartonados ou plastificados, de preferência com cantos redondos, talvez com janelas e orifícios que revelam surpresas, e adequados a mãos pequeninas. Os melhores serão sempre os que não subestimam a capacidade de compreensão da criança, ampliam a sua experiência, nutrem o seu imaginário e convidam ao maravilhamento, ao diálogo, à reflexão e à releitura.
Qualquer altura em que o adulto e a criança estejam serenos e disponíveis será boa para ler ao bebé, porém a hora de dormir constitui um momento perfeito para a criação do ritual da leitura em família. A entrega psíquica, afetiva e lúdica do adulto é fundamental no acesso da criança ao mundo dos livros, já que esta está dependente claramente dele e da sua mediação para a entrada noutros mundos ficcionais. Ler diariamente para e com a criança, pensar, sentir e acompanhar, escutando e valorizando os tempos do bebé; garantir o contacto direto com os livros, o seu manuseamento e exploração, o formular de hipóteses e a sua confirmação; criar um tempo de cumplicidade e de ternura em redor da leitura e da palavra, todas estas são ações de um valor incalculável. Daí a importância de pensar e proporcionar experiências leitoras, artísticas, culturais e formativas regulares não só às crianças, mas também aos adultos que as acompanham.

Paula Cusati e CristinaTaquelim
Texto publicado na Agenda Cultural de Mértola, 2021