terça-feira, 15 de setembro de 2015

Nove modos de ensinar as crianças a odiar a leitura!


Ainda a propósito de listas, lembro Gianni Rodari, professor, jornalista e escritor italiano. Autor de uma extensa e magnífica obra (praticamente desconhecida em Portugal) e vencedor do Prémio Andersen em 1970, descreve, com a sua característica ironia, a maneira como os adultos contribuem para o ódio à leitura neste texto de 1966 (do qual traduzi apenas alguns trechos), na esperança de que a leitura da sua listagem produza o desejado antídoto:


NOVE MODOS DE ENSINAR AS CRIANÇAS A ODIAR A LEITURA

1. Apresentar o livro como uma alternativa à TV.
(...) Psicologicamente, não me parece que negar um prazer ou uma atividade agradável (ou que se sente como tal, o que vem dar no mesmo) seja o modo ideal de fazer com que amem outra atividade: será, isso sim, a maneira de lançar sobre esta última uma sombra de aborrecimento e de castigo.

2. Apresentar o livro como uma alternativa à banda desenhada.
(...) na minha opinião, não há uma relação de causa-efeito entre a paixão pela banda desenhada e a ausência de interesse pelas "boas leituras".

3. Dizer às crianças de hoje que as crianças de antigamente liam mais.
O adulto tem frequentemente a tentação (e raramente lhe resiste) de louvar "o seu tempo", especialmente o tempo da sua infância que a sua memória pinta com cores alegres e apresenta como uma estação ideal. A memória é uma bajuladora e uma aldrabona de primeira ordem, mas é difícil apercebermo-nos disso. (...)

4. Pensar que as crianças têm demasiadas distrações.
(...) isso não depende do número e da qualidade das "distrações" (ou seja, das ocupações mais livres, e, por isso, mais amadas, e, por isso, mais ricas em termos de eficácia educativa), depende do lugar que o livro ocupa na vida do país, da sociedade, da família, da escola.

5. Atribuir às crianças a culpa de não gostarem de ler.
(...) Se procurarmos "porquês" menos cómodos do que a acusação prepotente dirigida às crianças, encontramos as culpas dos pais: há casas onde nunca entra um livro, existem milhares de licenciados sem biblioteca, há tantos pais que nem sequer lêem o jornal, e depois admiram-se de os filhos fazerem o que eles fazem. Há culpas públicas: da escola e do Estado; e existem as culpas da nossa cultura (...).

6. Transformar o livro num instrumento de tortura.
(...) O livro que entra na escola sob o esquema do aproveitamento escolar produz resultados meramente escolares: não se torna algo de belo e bom, de que se sente necessidade, mas uma coisa que serve ao professor para dar uma nota. A escola como tribunal, em vez de ser vida.
Assim, evita-se a dificuldade principal, que é a de fazer nascer a necessidade da leitura, que é uma necessidade cultural, não um instinto, como comer, beber e dormir, não algo da natureza."

7. Recusar-se a ler para a criança.
A voz da mãe, do pai (do professor) tem uma função insubstituível. Todos obedecemos a esta lei, sem o saber, quando contamos uma história à criança que ainda não sabe ler, criando, através da história aquele "léxico familiar" de que fala Natalia Ginzburg, no qual a intimidade, a confiança, a comunhão entre pais e filhos se exprimem de modo único e irrepetível. (...)
A história escrita é já o mundo: já não é o "léxico familiar", é contacto com uma realidade mais vasta, conhecida através da fantasia, que nas crianças é como um terceiro olho (...).

8. Não oferecer uma escolha suficiente.
(...) a pequena biblioteca, pessoal ou coletiva, é indispensável (...) para que possa suscitar curiosidades diversas, satisfazer ou estimular diferentes interesses, responder às mudanças de humor, à evolução da personalidade, da formação cultural, da informação. (...)

9. Mandar ler.
(...) É indubitavelmente o mais eficaz se queremos que as crianças aprendam a odiar a leitura. Garantido a cem por cento. Facílimo de aplicar.
(...) uma lição que não esquecerá, ou seja, ler é uma daquelas coisas que temos que fazer porque os adultos mandam, um daqueles males inevitáveis relacionados com o exercício da autoridade por parte dos adultos. Mas assim que nós formos grandes também, assim que formos adultos, assim que formos livres...
Visto a posteriori , isto é, pelo número de adultos legalmente alfabetizados que, assim que saem da menoridade, não lêem mais nenhuma linha, este deve ser, de todos os sistemas, o mais difuso (...)

in Gianni Rodari, Scuola di Fantasia, Einaudi, 2014

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