Morreu ontem Ana Luísa Amaral. Bem sei que a obra permanece, mas quando morre um poeta, o mundo fica mais cinzento e menos nítido. A notícia brusca da sua morte trouxe-nos um sentimento de orfandade.
Numa entrevista ao Expresso, publicada originalmente a 29 de maio de 2019 e agora reproposta no site do jornal, a poeta dizia:
"A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com a poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o simbólico, e nós, humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de dormir."
Ao longo do dia de ontem, a sua obra foi tomando conta do Facebook, pelo menos de muitas das pessoas que sigo. E fui lendo e relendo e senti-me menos órfã. É muito bonito ver que poemas seus escolhem para a homenagear! Quis guardar aqui alguns desses poemas, bem como os links para programas de rádio e de televisão com Ana Luísa Amaral, para a ela e à sua poesia poder mais facilmente regressar.
Na impossibilidade de colocar aqui todos, escolhi 3 desses poemas:
Testamento
Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.
Prece no Mediterrâneo
(do mural da professora Guilhermina Rebocho)
Graças às maravilhas da tecnologia, podemos continuar a escutá-la em algumas moradas virtuais, como, por exemplo:
- os 255 episódios (de cerca de 15 minutos) disponíveis desse verdadeiro curso de poesia do mundo que é o programa "O som que os versos fazem quando abrem", onde Ana Luísa Amaral conversa com Luís Caetano sobre poesia.
- os primeiros 46 minutos da conferência Vale a pena ler, Festival Antena 2, em 2017.
- o podcast do Encontro de Leituras, o clube conjunto do jornal Público com o brasileiro Folha de S. Paulo.
- o episódio de 15 de julho de 2022 de A Ronda da Noite, em que conversa com Luís Caetano a propósito do seu último livro, O olhar diagonal das coisas.
- a Grande Entrevista, que passou ontem na RTP3.
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