domingo, 7 de agosto de 2022

Ana Luísa Amaral (1956-2022)

Morreu ontem Ana Luísa Amaral. Bem sei que a obra permanece, mas quando morre um poeta, o mundo fica mais cinzento e menos nítido. A notícia brusca da sua morte trouxe-nos um sentimento de orfandade. 




Numa entrevista ao Expresso, publicada originalmente a 29 de maio de 2019 e agora reproposta no site do jornal, a poeta dizia:

"A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com a poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o simbólico, e nós, humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de dormir."

 

Ao longo do dia de ontem, a sua obra foi tomando conta do Facebook, pelo menos de muitas das pessoas que sigo. E fui lendo e relendo e senti-me menos órfã. É muito bonito ver que poemas seus escolhem para a homenagear! Quis guardar aqui alguns desses poemas, bem como os links para programas de rádio e de televisão com Ana Luísa Amaral, para a ela e à sua poesia poder mais facilmente regressar. 

Na impossibilidade de colocar aqui todos, escolhi 3 desses poemas:


Testamento

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.




Prece no Mediterrâneo


Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia,
gente que veja com coração de ver,
vozes que nos aceitem
É tão dura a viagem
e até a espuma fere e ferve,
e, de tão alta, cega
durante a travessia
Fazei, Senhor, com que não haja
mortos desta vez,
que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
e a vossa paz enfim
se multiplique
Mas depois da jangada,
da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser,
do mar
que é também nosso.

(do mural da escritora Irene Vallejo)



Lugares comuns

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)
Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...
E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
como quem diz: That’s it
e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são.

(do mural da professora Guilhermina Rebocho)



Graças às maravilhas da tecnologia, podemos continuar a escutá-la em algumas moradas virtuais, como, por exemplo:

- os 255 episódios (de cerca de 15 minutos) disponíveis desse verdadeiro curso de poesia do mundo que é o programa "O som que os versos fazem quando abrem", onde Ana Luísa Amaral conversa com Luís Caetano sobre poesia.

- os primeiros 46 minutos da conferência Vale a pena ler, Festival Antena 2, em 2017.

- o podcast do Encontro de Leituras, o clube conjunto do jornal Público com o brasileiro Folha de S. Paulo.

- o episódio de 15 de julho de 2022 de A Ronda da Noite, em que conversa com Luís Caetano a propósito do seu último livro, O olhar diagonal das coisas. 

- a Grande Entrevista, que passou ontem na RTP3.

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