segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Carta aberta de uma mediadora de leitura no início de mais um ano escolar

Carta aberta de uma mediadora de leitura para todos os que constroem e lutam por uma escola melhor*


Cada início de mais um ano letivo representa sempre uma nova oportunidade de fazer mais e melhor. Cada recomeço pode e deve trazer consigo horizontes largos e possibilidades concretas. Este é o momento em que todos (famílias, docentes, funcionários, diretores e suas equipas, direções gerais, autarquias, etc) focam, ou deveriam focar, a sua atenção e os seus esforços conjuntos  na construção de uma escola mais motivadora, inclusiva e atenta à realidade que a circunda. 

Os dados relativos à literacia são preocupantes: 1 em cada 5 jovens de 15 anos e 1/4 da população adulta da União Europeia não possui as competências de leitura e escrita necessárias para funcionar plenamente em sociedade (1). Embora os alunos portugueses de 15 anos tenham obtido uma posição superior à média da OCDE em leitura nos exames PISA de 2022 (2), a diferença foi de apenas 1 ponto (PT 477 pontos; OCDE 476), representa uma descida relativamente a 2018 (492 pontos) e acompanha a tendência mundial de decréscimo acentuado nas competências literácitas. Quanto aos níveis de proficiência da leitura, descemos do 3º para o 2º (sendo o 6º o mais elevado).

São dados importantes que nos comprovam o que verificamos no terreno e demonstram que ainda há muito para fazer. Aliás, é urgente agir! Enquanto mediadora da leitura e da escrita, gostaria de  vos convidar a refletirem comigo acerca do importante e insubstituível papel que cada um de nós cumpre, ou poderá cumprir, na edificação de um percurso escolar precioso e fecundo para as crianças e jovens que dentro de poucos dias entrarão nas salas de aula do nosso país. É essencial ajudar a formar leitores, ou melhor, a cultivar leitores autónomos e críticos, cidadãos ativos e participativos desde tenra idade.
 
Se as famílias reconhecerem neste recomeço a ocasião ideal para criar ou retomar hábitos de leitura partilhada, por exemplo, como a história da boa noite, todas as noites, sem pressas nem ânsias de praticar a leitura, mas simplesmente pelo prazer de desfrutarem juntos de uma boa narrativa, a criança associará o ato de ler a momentos permeados de afetos e conversas significativas. Se as casas dessas famílias forem ambientes leitores e elas mantiverem esses hábitos independentemente da idade da criança e da sua fluência leitora, esta não sentirá a leitura como um peso ou uma prova, mas como um gesto natural e também uma dádiva.
 
Se os docentes não se deixarem soterrar pelas orientações curriculares e programas, mas souberem lê-los com um sentido de prioridade e propósito, serão capazes de dedicar quotidianamente um tempo à leitura e à escrita. Saberão fazê-lo não com fichas, nem com manuais, mas com a autêntica literatura para a infância e juventude, com o seu entusiasmo, o seu conhecimento e a sua experiência de educadores e professores leitores, lendo em voz alta, fomentando a leitura individual e a construção coletiva de sentido. Para além de tudo o que já as habita, e que talvez até cause demasiado ruído (o início do ano letivo é uma excelente ocasião para "curar" os espaços educativos), as salas de aula têm que ter livros, muitos e bons. Com os livros certos os docentes conseguirão chegar até aos alunos mais relutantes.
 
Se os diretores e as suas equipas assumirem a leitura e a escrita como competências transversais fulcrais para a aprendizagem ao longo da vida, que sustentam a curiosidade, a imaginação e a criação de conhecimento em qualquer área, saberão mobilizar toda a escola em torno de um plano leitor anual ou plurianual. Saberão apoiar os professores bibliotecários e os restantes docentes, atribuindo-lhes os recursos (financeiros, humanos, formativos) necessários para que a leitura e a escrita não sejam reduzidas a provas, concursos, ou espetáculos, mas antes adquiram a dignificação plena e a alegria contagiante que advém da prática quotidiana, do esforço de aprender, do prazer de ler e compreender, e da consequente evolução e melhoria por parte dos alunos a todos os níveis.
 
Se as direções-gerais (e o ministério da educação) apoiarem verdadeiramente as escolas, os seus diretores e todos os docentes, saberão fazer cada vez mais um trabalho de acompanhamento e supervisão pedagógica em detrimento da fiscalização burocrática.

Se as autarquias investirem seriamente na cultura e na educação, saberão apoiar as escolas e as famílias, dedicando uma boa parte do seu orçamento a programas municipais de promoção do livro e da leitura em parceria com as escolas, outras instituições culturais e, obviamente, o Plano Nacional de Leitura. Valorizarão os mediadores das bibliotecas municipais, confiando no seu trabalho e na sua experiência. Darão o seu exemplo e não meramente a sua presença.

Tudo isto é possível. Uma escola leitora, inspiradora, para todos, não é uma utopia. Para que tal aconteça, cada um de nós (famílias, docentes, funcionários, diretores e suas equipas, direções gerais, autarquias, etc) deverá deixar de lado as críticas, as queixas, as desculpas e fazer a sua parte. Ninguém se pode excluir ou isentar. Basta de palavras. É hora de gestos concretos. Aproveitemos este início limpo, este ano inteiro por escrever. Ajamos, agora!

Atentamente,

Paula Cusati
mediadora de leitura
 

*Esta carta atualiza a que escrevi em setembro de 2017, aqui.  

(1) Síntese do Relatório do Grupo de Peritos de Alto Nível sobre Literacia da UE (Set. 2012): http://www.eli-net.eu/fileadmin/ELINET/Redaktion/user_upload/LITERACY_SUMMARY_PT.PDF

(2) Informações do IAVE sobre o Programme for International Student Assessment (PISA): Relatorio-Final.pdf (iave.pt)

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